Plano
Oswald estalou os dedos que não estavam quebrados e estendeu o mapa na mesa.
Todos os presentes se projetaram para frente. Queriam ver
aquilo, e deduzir o que ele planejava.
Pegou um pedaço de carvão e riscou todas as galerias e
encanações que lhe interessava. A cada volta e curva que Oswald Lewis fechava,
aqueles ao seu redor demonstravam mais surpresa.
— E aí está. – jogou o carvão longe e tragou o cigarro. – O
portão de Shallvy.
O desenho que Oswald fez formava um círculo de magia
completo, que estava embaixo da cidade há anos, feito de canos e concreto.
— Achei que era lenda… – Lucas tirou os olhos do papel e pôs
e Oswald.
— Lenda urbana.
Queria que fosse. Eles não ensinam a verdadeira história nas escolas, Lucas.
Claro que não. Shallvy foi erguida por magos, antes da extinção deles. E o
propósito sempre foi esse, ser o maldito portão do inferno. Sabia que a palavra
Shallvy quer dizer portal?
— Sério que ninguém mais sabia? – Nick tentou soar
divertido.
— Exato. Eu juro pra vocês, crianças. Meu pai e eu demolimos
vários pedaços deste círculo, quebrando-o. Para impedir qualquer doido que
resolvesse usar essa merda. Mas é claro que, se Louis já está fazendo o ritual,
ele já reconstituiu o círculo. E – ele olhou o relógio – não temos nem tempo
nem dinamite suficientes para quebrar de novo.
As gêmeas se encararam, nervosas.
— Nós podemos – elas começaram.
— Não, vocês não podem.
– era uma ordem. Aqueles esgotos estão bem guardados agora, garanto. E não por
aqueles gatinhos mansos que vocês vêm enfrentando.
Oswald encarou um a um, depois ergueu a mão destra e o carvão
veio até ela. Ele apertou o carvão e bateu bem em cima do centro do círculo,
que era uma galeria circular, cuja legenda era “prefeitura”.
— Ele está aqui, o filho da puta. Pediu algo em troca da
moça? Vince?
— Outra menina pura.
— Bem, ainda deve haver alguma por aí… apesar de que Shallvy
é um grande cetro…
— Não temos pra procurar. – Vince encarou Oswald.
O tio encarou os olhos anis por alguns instantes. Cada vez
que via o sobrinho, ele se parecia mais com John Heisenberg e menos com Liz
Lewis. Lamentava isso. Não odiava John, mas também não o amava.
Soltou fumaça pelas narinas antes de falar.
— Mas se tivesse tempo, você procuraria, não é? – mediu as
palavras, estudando-o.
Vincent não vacilou.
— Claro.
Oswald sorriu.
— Maldito seja o sangue dos Heisenberg por toda a
eternidade. Bem, como não temos escolha, vocês vão lá matar aquele cara de
preferência antes dele abrir o maldito portão. E ouçam bem meu plano.
•••
Naquela noite, até os galgers resolveram fazer silêncio.
Aquilo sufocava qualquer um, principalmente um par de gêmeas.
— Icaro. – Nicolle chamou a atenção do irmão, que estava nas
rédeas do galger que eles dividiam.
— Que foi?
— Vince… você viu a aura dele?
— Eu falei. Juro. Mas ele não quis saber. Tá muito puto ainda…
Nicolle mordeu o lábio inferior.
— Icaro, se vira. Aquela aura não pode continuar negra
assim. Vincent é forte demais, se aquele cara pegar ele, se souber o que a aura
negra significa…
— Mas como, Nicolle?
— Não sei! Irrite-o até a aura ficar vermelha, não?
— Eu devia ter falado com o pai.
— E ia ajudar em que? Pai não vê auras. Nem sabia que
existiam. Não ia saber o que fazer pra mudar aquela cor…
Icaro assentiu.
Eles desceram na praça em frente à prefeitura, que estava
deserta. Nem corujas piavam na noite cerrada.
Foram todos, exceto Oswald, Aryon e Christina. Nick foi o
primeiro a avistar um bueiro e ir até ele. Os outros olhavam os lados,
desconfiados, revólveres e lâminas em punho.
A desconfiança era óbvia. No caminho todo, eles não
avistaram uma besta sequer. Nenhuma, tudo no mais completo silêncio…
As luzes estavam quase todas quebradas, e não havia corpos
no chão. Nem de criaturas, nem de humanos. Só havia as manchas de sangue, rubro
e negro.
— Estão vindo. – Lucas disse um instante antes de Nick
arrancar a tampa do bueiro.
Um rosnado, depois um rugido alto. De vários lados, coisas
negras de olhos amarelados saíram, salivando e rosnando.
— Pra dentro. – Serena disse – Rápido! – ela ergueu a mão e
empurrou Icaro com magia até o bueiro, onde ele caiu com um grito de susto.
— Serena! – Lucas a repreendeu.
— Você também. – Nicolle atirou-o pra dentro do esgoto com a
mesma magia que a irmã usou. – Nick, você fica. – ela o puxou fortemente, e ele
caiu rolando ao lado dela. – Vincent…
Ele encarou-as. Serena, Nicolle, as botas de Nick, Jeny. As
duas sabiam algo, ou não os separaria.
Sem questionar, pôs as pernas pra dentro do bueiro.
— Vince! – Nicolle ainda gritou. Engoliu seco ao ver o olhar
dele em sua direção, e acrescentou: – Cuidado com sua aura… – a voz soou
preocupada, apenas.
Ele não disse nada, só desapareceu pra dentro dos esgotos.
Um instante depois, uma pedra de cinco metros de largura
caiu exatamente em cima do bueiro, fazendo o chão tremer.
— Tudo bem? – Jeny perguntou, olhando os garotos.
Sentiu-se estúpida logo depois. A pessoa mais fraca ali era
ela, bem sabia.
— Sim, vá para a torre da igreja. Já. – Nicolle instruiu,
sem olhar em sua direção.
Tão nova, e mandona
como uma boa Lewis, Jeny riu e obedeceu.
— Que inconveniente, não? Cheguei atrasado. – a voz ressoou das
árvores do parque. Era masculina, jovem.
Nick carregou a arma ruidosamente.
Ouviram os passos dos sapatos, e logo depois a silhueta
delineada por um poste que piscava.
— Louis vai me matar, sete infernos. – praguejou.
Nicolle reparou bem suas feições.
Era louro, vestia-se como Louis, ternos caros e alinhados.
Os cabelos eram bem penteados pra trás, lisos. Olhos claros. Podia ter a idade
de Aryon, de dezoito a vinte anos. Seu sorriso era lindo e os olhos eram azuis
claros.
Nicolle teria se apaixonado em outras circunstâncias.
— Um, dois… quatro com a moça na igreja. Ótimo, o maior
grupo. E as gêmeas, Louis disse que são o grande perigo… ele consegue lidar com
os outros. Já me apresentei?
— Mortos não falam. – Nicolle cuspiu as palavras, e em
seguida entrelaçou os dedos das duas mãos, lançando uma esfera de energia pura
na direção dele, que acetou em cheio.
— Errou, bela donzela. – a voz soou a seu lado. Ele se
deslocara. – Rivest. Chamo-me Reily Rivest, e caso não saiba, sou primo primeiro
de Louis, lado da mãe. Pode me chamar só de Reily, e aquele que está queimando
ali é um clone de terra, já ouviu falar?
— Já. – Nicolle cortou o ar com sua espada, onde instantes
antes estava Reily.
— Eu queria – ele apareceu bem mais longe desta vez –
brincar pessoalmente, mas ouvi recomendações… melhor cansar vocês primeiro.
Reily disse algumas palavras de poder, e das sombras surgiu
a maior criatura que Nicolle já vira em vida.
Cinco metros de altura, talvez mais. Rugia de tal modo que
afugentava até as bestas menores que estavam perto dele. Bípede, braços
desproporcionais, gordo e lento, mas voraz. Ele pegou uma das criaturas e
lançou na direção dos três. Nick teve tempo de desviar, jogando-se no chão.
Cada passo da criatura era custoso e fazia o chão tremer. Nick
viu nisso uma vantagem. Olhou os lados e não viu nem Serena e muito menos Nicolle.
Mordeu o lábio inferior e atirou em uma das bestas que não fugiu.
Viu um lampejo branco pela visão periférica e notou que o
gigante foi atingido em cheio.
O braço direito pendia, preso apenas por alguns filamentos
de carne, e o grito que ecoou machucou os ouvidos de Nick, acostumados a
disparos. A criatura berrava sem se conter, olhando todos os lados, procurando
o agressor… Nick gelou até os ossos quando viu os olhos amarelos pararem nele. O monstro deu um passo e seu braço
caiu, escorrendo gosma negra.
Ele virou e, ao ver o membro morto, urrou com mais raiva
ainda, e se lançou o mais rápido possível atrás de Nicholas.
Nick não podia dar as costas ao inimigo gigante, e não podia
correr de ré, ou então os cães o pegariam. Decidiu então ir ao encontro do
monstro sem braço. Correu gritando, passou por baixo das pernas dele e parou
num poste vários metros depois.
Onde, por todos os
infernos, estão aquelas bruxas tratantes?
Pensou, indignado. Nunca mataria aquela criatura sem usar magia.
O gigante levou um minuto inteiro para se virar e quando o
fez, recebeu mais um lampejo branco. Este brilhava muito mais que o outro, e
certamente era mais forte. Atingiu o pescoço da criatura, separando a cabeça do
corpo com um chiado de queimadura.
O cheiro que exalou fez cócegas no estômago acostumado de Nick
enquanto ele viu a criatura tombar. Segurou-se no poste para não cair com o
tremor.
No instante seguinte, as gêmeas apareceram a seu lado.
— Onde estavam, suas vadi- vacas?! – ele gritou, abrindo o
moletom. Haroldo começou a se remexer e tentar arranhar Nick.
— Matando aquilo. – elas disseram juntas, e apontaram
juntas.
— Você foi uma ótima isca, como sempre. – Serena desdenhou.
– Mas falando sério agora, aquela magia requer tempo.
Nick olhou Haroldo.
— Você não pode comer aquilo, por mais cheiroso que esteja,
Haroldo. – olhou-o, preocupado. – deveria ter te deixado em casa, mas o tio
Oswald ia matar você…
Reily apareceu ao lado da carcaça sem cabeça. Parecia
despreocupado, com aquele sorriso torto e as mãos nos bolsos. Pulou uma poça de
sangue preto.
— Bem, eu previ isso. Vocês são diferentes, meninas. Mas não
são tão fortes assim. O garoto vermelho lá embaixo põe as duas no chinelo.
— Mas nem ferrando – Nicolle riu. – Eu conheço um perdedor
quando vejo um, sorrisinho. E Vincent só vai ficar bom dez anos depois que
despertar.
— Certo, tanto faz. Como preciso matar vocês duas, não posso
enrolar. Quero ver o último ritual.
Reily sumiu.
— Corte de fluxo. – elas disseram juntas, se encarando, e Nick
não viu quando Serena foi atingida.
Só viu a menina voar pra trás, com um arquejo.
A verdadeira luta começou.
•••
Vincent quase foi soterrado quando parte do pavimento cedeu.
Correu, e agradeceu a um deus aleatório pela galeria ser larga. Aos poucos foi
se estreitando, mas mesmo assim ainda conseguia andar sem se abaixar muito.
Vince respondeu com um seco “estou bem” quando Icaro lhe
perguntou.
Ele ignorou tudo que Icaro e sua irmã disseram. Tomar
cuidado com o que? Não podia ver auras. Nem sabia se realmente possuía sangue
mágico nas veias. Só deixaria aquele misto de ódio de si mesmo, tristeza,
agonia e algo mais quando visse Amanda. Inteira, viva e perfeitamente bem.
Mas ele sabia, ah, sabia.
Amanda nunca mais seria a mesma. Porque ninguém permanece o
mesmo depois de qualquer tipo de violência.
Ninguém.
Vincent estava se amaldiçoando pela centésima vez quando
ouviu Icaro resmungar.
— Hey, Vince. Olha.
Vincent chegou mais perto da grade e olhou sorrateiramente.
Realmente havia uma galeria circular enorme, com várias
saídas. No centro havia dois altares improvisados, iluminados com tochas e
velas. Ainda havia alguns instrumentos.
Mas Vincent só tinha olhos para os cachos dourados de
Amanda, esparramados na pedra.
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